PROCESSO DISCIPLINAR – ESTATUTO DO SERVIDOR DE SÃO PAULO

PROCESSO DISCIPLINAR:
CRÍTICA AO MOMENTO PROCESSUAL DO INTERROGATÓRIO PREVISTO NO ESTATUTO DO SERVIDOR DO ESTADO DE SÃO PAULO.
DISCIPLINARY PROCESS:
CRITICAL TO THE PROCEDURAL TIME OF THE INTERROGATION PROVIDED FOR IN THE STATUTE OF SERVER OF THE STATE OF SÃO PAULO.
Eliseu Gomes de Oliveira:
Advogado, Pós-graduado em Direito Empresarial pelo Unifieo, Pós-graduado em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura, Assessor da Presidência da XIX Turma de Disciplina da OAB/SP, Professor de Direito Administrativo Convidado da GCM de Jandira. E-mail: eliseu@oliveiraenascimento.com.br
Resumo: O processo Administrativo Disciplinar é o meio utilizado pela Administração Pública para esclarecimento de possíveis faltas cometidas pelo Servidor Público. Para conseguir alcançar sua finalidade é necessário o respeito aos princípios constitucionais administrativos. O interrogatório é o momento processual adequado para exercício da autodefesa.
PALAVRAS CHAVES: PROCESSO DISCIPLINAR – INTERROGATÓRIO – AUTODEFESA – MOMENTO PROCESSUAL – ESTATUTO DO SERVIDOR.
Abstract: The Administrative Disciplinary process is the means used by the Public Administration to clarify possible faults committed by the Public Servants. In order to achieve its purpose, it is necessary to respect the administrative constitutional principles. The interrogation is the appropriate procedural moment to exercise self-defence.
KEYWORDS: DISCIPLINARY PROCESS – INTERROGATION – SELF-DEFENSE – PROCEDURAL MOMENT – SERVER STATUTE.
O interrogatório é o momento processual-administrativo para que o acusado possa apresentar a sua versão sobre os fatos. Para alguns é momento de prova, para outros é momento de defesa. Será momento probatório se o acusado admitir expressamente os fatos tal como narrado na portaria. Entretanto, será defesa se houver a negativa, expressa ou tácita, dos fatos narrados, tal como lançados, ou mesmo se o acusado se mantiver em silêncio, total ou parcial.
Nos termos do artigo 278 e seguintes do Estatuto do Servidor Público Estadual, Lei 10.261/68, o interrogatório é o primeiro ato da instrução. Nosso entendimento, no entanto, é que o interrogatório, como primeiro ato de instrução processual, não foi recepcionado pela Constituição cidadã de 1988, porquanto desprestigia o exercício do amplo direito de defesa e do contraditório.
Sabemos que o direito à ampla defesa tem diversos desdobramentos, sendo dois deles a defesa técnica e a autodefesa. A defesa técnica “é aquela realizada pelo procurador do interessado, o advogado, profissional dotado de capacidade técnica para elaboração de uma defesa adequada[1]”, enquanto que “a autodefesa constitui a possibilidade de o sujeito pessoalmente realizar as condutas e providências para preservar-se de prejuízos ou sanções[2]”.
O interrogatório é a fase da instrução que permite ao suposto autor da infração disciplinar esboçar a sua versão dos fatos, exercendo a autodefesa, ou, ainda, se lhe for conveniente, invocar o direito ao silêncio, total ou parcial, sem nenhum prejuízo à culpabilidade.
Em atenção ao princípio constitucional da ampla defesa, permite-se ao acusado o direito de se manifestar após o conhecimento de todos os fatos a si imputados, sendo, assim, o último a se manifestar. Deste modo, o interrogatório deve ser o ato final a ser realizado.
Em brilhante artigo escrito à Revista Eletrônica Consultor Jurídico, publicada em 11/10/13, disponível em www.conjur.com.br, o professor Alexandre de Moraes, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, escreveu:
O interrogatório do acusado como ato processual de defesa, inclusive permitindo o “direito ao silêncio”, que engloba o privilege against self-incrimination (privilégio contra autoincriminação, em tradução livre) do réu em procedimentos sancionatórios, é direcionado no intuito de preservar o caráter voluntário de suas manifestações e a regularidade de seu julgamento, com um diálogo equitativo entre o indivíduo e o Estado, como bem salientado por T.R.S. Allan (Constitucional Justice. Oxford: University Press, 2006, p. 12).
A amplitude do interrogatório como meio de defesa, englobando o “direito ao silêncio” e o “direito de falar no momento adequado”, sob a ótica da impossibilidade de alguém ser obrigado a produzir provas contra si mesmo, seja em suas declarações, seja na compulsoriedade de entrega de provas com potencial lesivo à sua defesa no processo penal, tornou-se tema obrigatório a ser discutido em relação ao direito constitucional à ampla defesa, tanto que submetido à alteração legislativa que não só o transformou em meio de defesa, mas também o situou após o término da instrução processual penal.
A participação do réu em seu julgamento não é apenas um meio de assegurar que os fatos relevantes sejam trazidos à tona e os argumentos pertinentes considerados. Mais do que isso, o direito do acusado em ser ouvido no momento processual adequado é intrínseco à natureza do julgamento, cujo principal propósito é justificar o veredicto final para o próprio acusado, como resultado legal justamente obtido, concedendo-lhe o respeito e a consideração que qualquer cidadão merece.
É necessário conciliar a autonomia das instâncias administrativa/disciplinar e penal com a garantia constitucional da ampla defesa, quando o acusado, tanto em sede de PAD quanto em AP , pretende no momento processual penal adequado apresentar em seu interrogatório sua versão dos fatos, impugnando – como a lei lhe permite – a prova produzida pela acusação durante a instrução processual penal. Conforme apontado pelo ministro Celso de Mello (8ª Questão de Ordem na Ação Penal nº 470, DJe de 02/05/2011), o interrogatório é “um ato de defesa”, e tem lugar “na última fase da instrução probatória”, pois somente nesse momento o “acusado terá plenas condições de estruturar de forma muito mais adequada a sua defesa”, mesmo que possa optar por “calar-se”,
Não é constitucionalmente razoável e exigível que alguém traia a si mesmo — nemo debet prodere se ipsum —, como bem observado por Kent Greenawalt (Silence as a Moral and Constitucional Right, 1981 – 23 William & Mary LR 15, pp. 40-41), antecipando o importante momento de seu ato de defesa, qual seja seu interrogatório, sem que tenha tido contato com todas as provas produzidas para sua incriminação; mesmo que o faça no campo administrativo.
A existente de autonomia das instâncias penal e administrativa não pode ter o condão de permitir a inversão de um ato de defesa, impedindo ao acusado a “oportunidade para esclarecer divergências e incongruências que, não raramente, afloram durante a edificação do conjunto probatório” (STF, AP 528, ministro Ricardo Lewandowiski).
Não haveria razoabilidade em se exigir que, em relação aos mesmos fatos, pudesse o impetrante ser notificado para comparecer perante a Comissão Processante para apresentar sua versão dos fatos antes do término da instrução probatória na ação penal, sob pena de inversão tumultuária dos atos processuais, com claro prejuízo a ampla defesa e contraditório.
É reconhecido pelo Poder Judiciário brasileiro que o Princípio da Razoabilidade impede os tratamentos excessivos (ubermassig), inadequados (unangemessen), buscando-se sempre no caso concreto o tratamento necessariamente exigível (erforderlich, unerlablich, undedingt notwendig).
Nessas hipóteses, independentemente da autonomia de instâncias, o tratamento exigível, adequado e não excessivo aos acusados, deve possibilitar que o mesmo somente seja interrogado pelos fatos surgidos na operação policial no momento processual adequado, ou seja, após a instrução processual penal instaurado para apuração dos mesmos fatos, independentemente da esfera de apuração.
Se os fatos são os mesmos! Se as provas que justificaram a instauração do procedimento disciplinar são somente as “provas emprestadas” da investigação penal! Se as imputações são idênticas! Deve ser observado o Devido Processo Legal e garantida a Ampla Defesa ao acusado, permitindo-lhe que seja intimado na condição de investigado e seu interrogatório no campo administrativo somente possa ser realizado após o término de todo produção probatória no campo processual penal.
O Princípio do Contraditório somente estará plenamente assegurado e será absolutamente respeitado se o acusado — na condição de réu — for interrogado na Ação Penal e em qualquer procedimento administrativo sancionatório que trate dos mesmos fatos, após toda a instrução processual penal, para ter a oportunidade, como já salientado, de “esclarecer divergências e incongruências que, não raramente, afloraram durante a edificação do conjunto probatório”.
O acusado tem o direito de ser ouvido no procedimento administrativo na condição de investigado e somente após a produção probatória no campo penal, quando se tratam dos mesmos e idênticos fatos, para que possa exercer em sua plenitude o Direito à Ampla Defesa e contraditório, analisando as provas produzidas pela acusação e demonstrando suas divergências e incongrugências.
[destacamos]
Aliás, torna-se equivocado deixar de entender como obrigatória a relação de simetria do direito administrativo disciplinar e o do direito penal, vislumbrada nos ensinamentos de Nelson Hungria[3], pelo qual inexiste distinção ontológica entre o ilícito administrativo e o ilícito penal.
O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.808.389/AM, em que foi relator o Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 20/10/2020, DJe 23/11/2020, decidiu:
RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. MOMENTO DO INTERROGATÓRIO. ÚLTIMO ATO DA INSTRUÇÃO. MAIOR EFETIVIDADE A PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. MINORANTE. ANÁLISE PREJUDICADA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. […] Embora, em regra, a decretação da nulidade de determinado ato processual requeira a comprovação de prejuízo concreto para a parte – em razão do princípio do pas de nullité sans grief -, o prejuízo à defesa é evidente e corolário da própria inobservância da máxima efetividade das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Uma vez que o interrogatório constitui um ato de autodefesa, não se deu aos recorrentes a possibilidade de esclarecer ao Magistrado eventuais fatos contra si alegados pelas testemunhas ao longo da instrução criminal.
O Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento do referido HC n. 127.900/AM tratou da manifestação final do acusado como questão elementar do direito de defesa:
Como os interesses dos réus colaboradores e não colaboradores são conflitantes – na medida em que o colaborador é obrigado a falar contra o delatado e se torna, na prática, uma “testemunha de acusação” –, os direitos ao contraditório e à ampla defesa só serão plenamente exercidos se o delatado se manifestar por último, sob pena de ele não ter a possibilidade de contradizer todas as cargas acusatórias que possam contribuir para a sua condenação ou todas as declarações acusatórias que foram prestadas em seu desfavor (ideia extraída do voto do Ministro Dias Toffolli).
Ainda, ressalto que o Supremo Tribunal Federal, ante a magnitude constitucional de que se reveste o interrogatório judicial, já teve diversas oportunidades de assentar que esse ato processual representa meio viabilizador do exercício das prerrogativas constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Nesse sentido: HC n. 94.016/SP, Rel. Ministro Celso de Mello, 2ª T., DJe 27/2/2009.
Para enfatizar o alto significado jurídico do interrogatório como expressão instrumental do próprio direito de defesa do réu, menciono, nessa mesma linha, a doutrina de Luigi Ferrajoli:
[…] no modelo garantista do processo acusatório, informado pela presunção de inocência, o interrogatório é o principal meio de defesa, tendo a única função de dar vida materialmente ao contraditório e de permitir ao imputado contestar a acusação ou apresentar argumentos para se justificar. (Direito e razão. Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. RT: 2002, p. 486, item n. 2).
Se o interrogatório é um ato essencialmente de autodefesa, colocá-lo no início da instrução processual inviabiliza o pleno direito de defesa, em especial a autodefesa, inclusive para esclarecer ao julgador eventuais fatos contra si alegados pelas testemunhas, manifestar-se pessoalmente sobre a prova acusatória a ele dirigida e influenciar na formação do convencimento.
Ninguém pode defender-se eficazmente sem pleno conhecimento das acusações que lhe são imputadas. Esse conhecimento, por sua vez, não se esgota na ciência da peça inaugural, mas se aperfeiçoa ao longo do processo[4].
REFERÊNCIAS:
[1] BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; Tratado de Direito Administrativo, v. V, 2ª Edição [cood. Maria Sylvia Zanella Di Pietro], São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2019, p700
[2] Op. Cit. p. 699
[3] Ilícito Administrativo e Ilícito Penal. In: Seleção Histórica da RDA – Matérias Doutrinárias Publicadas em Números Antigos de 1 a 150, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, p. 15, 1945-1995.
[4] OSÓRIO, Fábio Medina; Direito Administrativo Sancionador, 6ª Edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2019, p.442